“Roll Away…”
A primeira coisa que notava ao acordar era a pedra ao lado de sua cama, e tão logo punha os pés para fora da cama começava a empurrá-la. Levava a pedra ao banheiro e depois a mesa do café da manhã. A empurrava por todo o percurso até o trabalho e após volta quando a estacionava ao lado de sua cama, na qual se atirava em busca do esquecimento que traria alívio do seu fardo. O sono era o único alívio constante de seu fardo, quando desperto se ficava parado sem empurrar a pedra sentia seu peso nos ombros mesmo que não a tocasse como se um autor sádico estivesse fundindo duas tragédias gregas em sua vida. Mas nem o consolo do martírio lhe restava, não era o único condenado a carregar tal fardo, todos a sua volta tinham suas próprias pedras que empurravam com doses diversas de resignação.
Muitos davam as suas pedras significados e propósitos, para alguns as pedras eram um treinamento, uma força superior as impunha as pessoas para fortalecer seus corpos e mentes para algo maior em futuro que viria. Para outros as pedras eram uma punição: A humanidade, corrupta e vil, estava condenada a carregar a pedra a fim de pegar seus pecados. Entre estes haviam até os que chegavam a atestar veementemente que nem todas as pedras eram iguais, que os mais virtuosos tinham suas pedras reduzidas com o passar do tempo e os maus atos dos devassos faziam suas pedras se tornarem mais pesadas.
Para ele ambas as teorias eram uma bobagem, era impossível carregar a pedra de outrem, para confirmar, mas tinha plena convicção de que todas pesavam igual, do mesmo modo nunca sentira que o seu fardo o fortalecia. No entanto, parte de si sentia inveja de quem conseguia acreditar em tais teorias, a dúvida sobre o porquê de empurrar a pedra lhe era um segundo fardo, tão pesado ou mais que a própria pedra. Todos os dias, enquanto rolava por onde quer que fosse ou enquanto ela lhe pesava os ombros durante o trabalho ou descanso, sua mente se inquietava e se exasperava em busca de respostas. Em seu tormento criava várias teorias ou tentava aceitar aquelas vividas pelos outros, mas nenhuma lhe descia, nenhuma lhe parecia a resposta, a verdade ou proposito que procurava.
Em um fim de tarde, quando empurrava sua pedra de volta para casa após um dia de trabalho, passou a fitar o horizonte com melancolia como se em algum lugar fora do alcance da visão pudesse enfim encontrar respostas. E então por um instante, enquanto sentia a angústia gerada pelo despropósito inundar sua alma, divisou além das nuvens um par de mãos ansiosas, a frente de um par de olhos tristes. No ápice do desespero, sua mente rompera as paredes de palavras do seu mundo de parágrafos e ele enxergava o seu autor. Sua primeira reação fora de ódio. Pela primeira vez olhava para o arquiteto de sua desgraça e sentia o ímpeto de descarregar nessa figura que agora sabia ser real todo o peso de suas dores e frustrações, mas quanto mais fitava os olhos por trás das mãos, mais a raiva dentro de si abrandar. Conhecia aqueles olhos, eram os mesmos olhos que via no espelho todos os dias desde que se lembrava e então sentia empatia. Entendeu que mesmo que não houvesse uma pedra como a dele, seu autor também era oprimido por um fardo. Essa compreensão o fez perceber seu proposito e o fez entender que seu autor jamais teria o mesmo alívio porque a realidade, diferente da ficção, não tem obrigação de fazer sentido. Esses pensamentos encheram seu coração de compaixão e a percepção de que só havia uma coisa que poderia fazer. Piscando de forma cúmplice para o horizonte, voltou a empurrar sua pedra e pela primeira vez se concentrou apenas em fazê-la rolar e com uma gostosa gargalhada empurrou sua pedra assobiando alegremente até chegar em casa.
É preciso imaginar Sísifo feliz!
