“No One Lives Forever”

Ansur Seolferspeech
8 min readFeb 15, 2024

Enquanto os braços do Estranho o envolviam e suas lágrimas encharcavam seu ombro, o Viajante sentiu algo dentro de si se romper… Antes que pudesse entender o que estava acontecendo ou formular um pensamento coerente, se viu também aos prantos nos braços da estranha figura que soluçava convulsivamente enquanto seu choro escorria pela barba malcuidada. E enquanto deixava toda dor e amargura escorrer pelos olhos, pensava em quanto tempo fazia desde a última vez que se permitiu chorar dessa forma? Quanto choro engolira nesses vinte e tantos anos ao ponto que chegara a se esquecer como produzir lágrimas? Quantas vezes quis pôr para fora o sofrimento em forma de pranto e se viu seco, incapaz?

Por Deus, o terror e a desorientação pelos quais passou hoje: Perdido em um lugar desconhecido se encontrando com monstros, mortos-vivos e bruxos e, só agora, graças a demonstração de vulnerabilidade desse desconhecido, sua alma finalmente conseguiu abraçar a própria vulnerabilidade, conseguiu se permitir chorar…

Não saberia dizer quanto tempo se passou enquanto choravam abraçados, mas em algum momento o Estranho se levantou e, sem dizer palavra, começou a caminhar, talvez por alguma conexão criada pelo momento anterior, talvez apenas pelo medo de ficar sozinho na floresta escura, o Viajante se apressou atrás dele.

Caminharam por algum tempo até retornarem à clareira da cabana. Ansioso para poder retornar a segurança daquelas paredes, o Viajante se adiantou em direção a ela, mas foi impedido pelo Estranho. Com um meneio de cabeça, ele indicou para que o Viajante se afastasse e depois com uma sequência de gestos espalhafatosos, como se regesse uma orquestra invisível, colocou a casinha abaixo. Em choque tanto com os poderes do outro, quanto com a insanidade de se destruir o único abrigo que possuíam, o Viajante não conseguiu reagir quando uma nova maravilha começava a acontecer. O Estranho começou uma nova sequência de gestos estranhos e num piscar de olhos outra casa, maior, surgiu ao lado dos escombros. O Viajante estava boquiaberto quando o Estranho se virou para ele e pela primeira vez ouviu-se a sua voz, embargada, pesada, como se estivesse reaprendendo a utilizá-la após tanto tempo em silêncio:

— A magia deve durar por dois ou três dias. Se você decidir ficar por aqui, vamos precisar construir algo de verdade.

Sem mais palavras, o Estranho entrou no palacete seguido pelo atônito Viajante. Quando este entrou no quarto que seu anfitrião indicou como sendo seu, ele se jogou na cama já pensando em como seria impossível dormir aquela noite.

Enquanto afundava no colchão macio, pensou como “no seu mundo’’, qualquer frase atravessada dita a um atendente de loja era o suficiente para o torturar por horas madrugada adentro, o que um dia tão cheio de loucuras como esse faria com sua mente ansiosa? Além de tudo, poderia confiar no Estranho? Essa casa mágica não poderia ser uma armadilha? Não estaria correndo o risco de seu anfitrião sofrer um surto durante a madrugada e atacá-lo com seus misteriosos poderes? Será que…

Acordou na manhã seguinte com o cheiro de café. Caramba, a noite toda passou e ele nem notou, nem mesmo sonhou novamente estar de volta à “realidade’”. Surpreso com a situação inédita foi a cozinha onde encontrou o Estranho terminando de pôr a mesa, simples, porém de aparência apetitosa, com pães, frios e ovos mexidos, além de um café recém passado.

Sem levantar os olhos de sua refeição, o Estranho fez um gesto para se sentar. Comeram em silêncio. Ao terminar de comer o Estranho permaneceu na mesa esperando que o Viajante também estivesse satisfeito, nesse momento o Estranho se levantou e novamente com o gesto mudo, solicitou que o Viajante o acompanhasse até o lado de fora, no que foi prontamente atendido.

Após saírem, o Estranho caminhou até o que sobrara da cabana, e sem se virar perguntou:

— Irá permanecer comigo ou posso refazê-la como era antes?

A pergunta desconcertou o Viajante. O que deveria responder? Desejava permanecer na companhia do Estranho? Enquanto refletia sobre essa dúvida, outra mais profunda se instaurou em sua mente. Desejava permanecer naquele lugar maluco? Se surpreendeu ao notar o quão natural lhe parecia perceber que não sentia “saudades” alguma de casa; por outro lado, esse novo mundo já se provara perigoso e imprevisível. O que fazia a ideia de um abrigo atraente, mas seria uma boa ideia dividir um abrigo com um feiticeiro sisudo, possivelmente insano, que acabara de conhecer?

Quase se sentia mal por desconfiar dele, afinal ele lhe salvara, dera abrigo para a noite e o alimentará. Mas a “vozinha” estava sempre ali para pontuar todos os “e se” possíveis, levantar as suspeitas cabíveis e o manter em eterno estado de alerta. No entanto, para variar, a “vozinha” só levantava problemas; nunca soluções.

Se recusasse a oferta do Estranho, ainda estaria vulnerável aos perigos desconhecidos daquele mundo, sozinho, e apenas com o que tinha nos bolsos. Teria sorte se tivesse ao menos uma tenda sobre a cabeça antes que anoitecesse de novo. E mesmo que quisesse voltar para “casa” não tinha a menor pista de como fazer isso. Tudo era perigoso, tudo era arriscado. Então, tentando ao máximo parecer descontraído e simpático, respondeu ao Estranho:

— Como posso ajudar a levantar o novo abrigo?

Trabalharam juntos pelo resto do dia. O Estranho explicou que magia que produzisse algo permanente era algo quase milagroso, muito além do alcance dele; mas poderia usar seus poderes para suprir a falta das ferramentas e acelerar o processo da construção da nova casa.

Por várias vezes, enquanto trabalhavam, o Estranho parava o que estava fazendo e se virava para a mata com um olhar vazio. Era possível notar o corpo dele se tencionando, como se estivesse pronto para disparar em direção a algo dentro da mata; como se houvesse ali algo emitindo um chamado que só ele pudesse ouvir. No entanto, após alguns segundos assim, ele voltava a se concentrar no que estava fazendo. Na primeira vez que aconteceu, o Viajante preferiu ignorar. Não era da sua conta e talvez fosse melhor não saber. Mas, à medida que a situação se repetia do avançar do dia, curiosidade e apreensão se intensificaram de modo que não aguentou mais se segurar.

— O que tem na mata que tanto lhe perturba?

O Estranho olhou demoradamente em sua direção sem parecer estar de fato o vendo por alguns segundos. Depois abriu a boca um par de vezes como se não soubesse bem o que falar e então olhando para o chão, finalmente murmurou como se falasse para si:

— E como se eu tivesse perdido algo lá… Eu não sei o que é, não consigo me lembrar… Às vezes duvido se realmente existe algo a ser encontrado, mas a falta dessa maldita coisa me consome sabe? Preciso procurar, mesmo sem esperança ou garantia, porque o não procurar para mim é ainda mais torturante quanto o não encontrar …

O Viajante ensaiou uma resposta, mas não tinha palavras. O desespero que observara consumir o feiticeiro na noite anterior parecia ainda mais cruel agora. Aquele homem a quem havia tratado com tanta cautela durante o dia todo, agora lhe inspirava profunda compaixão.

— Não sei se é o trabalho ou a companhia, — voltou a falar repentinamente o Estranho — , mas hoje eu consegui resistir ao anseio sem tanta dor.

Após isso o Estranho se calou, oferecendo ao Viajante um sorriso tímido, porém sincero enquanto voltava a se concentrar no trabalho.

Assim se passaram dois dias, com os dois trabalhando juntos no novo e maior abrigo. Na maior parte do tempo trabalhavam em silêncio, mas sempre que percebia o Estranho reagindo ao misterioso chamado, puxava assunto com alguma aleatoriedade. No meio da tarde do segundo dia o palacete desapareceu em um estalo surdo, como se nunca estivesse estado lá. Na verdade, nem teria notado o momento em que a invocação se desfez não fosse por um longo suspiro de alívio soltado pelo Estranho no mesmo instante.

Felizmente já tinham as paredes e o teto do abrigo pronto a essa altura, então puderam dormir de forma não tão confortável, mas segura aquela noite.

Na primeira noite em que passaram no novo abrigo, o Visitante acordou no meio da noite devido a um pesadelo. Para poder se acalmar antes de voltar a deitar, resolveu esticar um pouco as pernas circulando pela casa. Ao passar pelo que seria a sala da casa quando estivesse pronta, se deparou com o Estranho sentado no chão, encarando, através da porta aberta, a escuridão fora do abrigo enquanto abraçava os próprios joelhos e cantarolava baixinho algo que o Visitante não conseguia compreender.

Hesitou por um instante, por um lado gostaria de conhecer melhor seu novo e peculiar colega de quarto, também perdera o sono e conversar com alguém poderia ajudar, por outro lado, sentia que estaria incomodando, teoria que a vozinha em sua cabeça (essa desgraçada onipresente) endossava insistentemente.

— Ora, não seja bobo! — ralhou consigo mesmo mentalmente — Do que adianta viajar para um novo mundo e continuar o mesmo covarde!

Com esses pensamentos resolutos, se aproximou do Estranho e percebeu que ele cantarolava dois versos do que parecia uma cantiga infantil em loop.

— Um feiticeiro, imerso em desespero, vaga pela mata escura… Um feiticeiro imerso em desespero, vaga pela mata escura… Um feiticeiro imerso em desespero, va…

Ao perceber a aproximação do Viajante, o Estranho suspendeu o murmúrio como que acordando de um transe.

— Te acordei? — perguntou com voz ausente.

— Não, perdi o sono por conta própria. — respondeu o Viajante se sentando ao lado do companheiro — A Ânsia te ataca durante a noite também?

— Às vezes sonho que encontrei sabe? Ai, acordo e é como se eu tivesse perdido de novo… — declarou o Estranho à beira das lágrimas.

Vendo o sofrimento do outro, o Viajante não conseguiu formar outra reação que não se aproximar e passar o braço pelos seus ombros em um abraço lateral. Não havia solução para o problema do seu novo amigo, mas ele pelo menos poderia estar ali para ele enquanto ele passava por isso, dividir o fardo. Enquanto estavam assim, as nuvens se dissiparam revelando uma linda lua cheia, cuja luz banhou os dois e a clareira frente ao abrigo. Como se o luar também iluminasse seu interior, o Viajante se sentiu subitamente animado e desejando transmitir ao companheiro o puxou pela mão o levando até o centro da clareira iluminada.

— Em “casa’’, quando eu não conseguia dormir, as vezes eu dançava sozinho pra tentar espairecer ou pelo menos me cansar. — explicou o Viajante — As vezes é disso que a gente precisa agora!

— Mas dançar sem música? — questionou o Estranho acanhado.
— Mentaliza uma melodia e se solta — respondeu o Viajante, com uma confiança que nunca sentira antes. Porque encorajar os outros era tão fácil, mas era impossível encorajar a si mesmo?

Tentando fazer das palavras ações o Viajante começou a assobiar sua canção favorita enquanto movia ombros, braços e cinturas de uma forma meio desengonçada, mas cheia de energia, seguindo o exemplo do outro o Estranho começou a se soltar e logo os dois estavam se divertindo, dançando sem ritmo sobre o luar. Enquanto dançavam uma inspiração repentina surgiu ao Viajante, uma ideia, óbvia como todas as ideias são depois que nós as temos, ele poderia sim ajudar e dar solução ao problema do Estranho!

— E se eu começasse a te ajudar a procurar? — Declarou o Viajante com voz animada.

— O quê!? — perguntou o Estranho incrédulo

— Te ajudar a procurar o que você perdeu, ué, acho que quando você achar você vai lembrar o que é, eu só preciso juntar tudo que eu encontrar e ir te mostrando. Ainda é o trabalho de uma vida, mas ainda é melhor do que você fazer sozinho.

— A Floresta das Perdas é perigosa, nem eu sei tudo de bizarro que se esgueira por entre suas sombras. Posso não ter poder o suficiente para nos proteger. Você tem certeza?

— Bom, eu meio que te devo pelo menos uma pelo dia em que nos conhecemos. Além disso — completou o Viajante dando os ombros e sorrindo sem parar de dançar — , ninguém vive para sempre mesmo!

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