“Just Another Day”

Ansur Seolferspeech
7 min readJan 27, 2022

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Todo dia é um dia comum, até o momento em que não é mais. Todo dia é perfeitamente normal, até o momento em que o mundo enlouquece… E às vezes isso é uma esperança. Embalado pelo doce tilintar da chuva, conseguiu sonhar um pouco antes do amanhecer um oásis de paz e felicidade entre a sensação de navalhas na cama durante toda a madrugada insone e o ruído infernal do despertador que independentemente do alarme escolhido sempre o fazia ter dor de cabeça. Mecanicamente apertou a opção “soneca”, sabendo que passaria os próximos quinze minutos encarando o teto inexpressivamente, repassando em sua mente uma lista com as frustrações dos últimos vinte e sete anos e questionando o motivo para se levantar e acrescentar linhas a lista. O som irritante do alarme o desperta do transe de autocomiseração.
Como um autômato se levanta, e se arruma para sair. Imerso enquanto suas pernas conduzem sozinhas o caminho repetido tantas vezes nada nota ao seu redor. Todas as casas do bairro poderiam ter sido substituídas por iglus durante a noite e ele jamais notaria, mas aquele dia seria diferente. Um brilho dourado refletido pela luz do sol pescou a atenção de sua visão periférica, um objeto brilhante era arrastado pela enxurrada próximo à sarjeta. Por alguns segundos a curiosidade e a inércia duelaram por suas próximas ações. Algo em seu íntimo ardia com a vontade de se livrar dos grilhões da rotina que o prendia dia após dia, qualquer coisa que quebrasse aquela sucessão mecânica de ações repetida dia após dia valeria a pena, por mais fútil ou estupida que fosse. Por outro lado, havia um pavor irracional da destruição do padrão tão cuidadosamente construído por anos, o bater de asas de uma borboleta pode causar tufões no outro lado do mundo, o que o rompimento brusco de uma rotina religiosamente seguida por anos não poderia causar? Sem perceber havia parado de caminhar, a rua vazia e o silêncio interrompido apenas pelo som das gotas de água em seu guarda-chuva. Teria ficado ali até o fim dos tempos, paralisado pelo conflito interno entre as forças da permanência e da mudança. No entanto, o objeto brilhante misterioso se aproximava rapidamente de um bueiro. A perspectiva de perder a oportunidade de escolher fez a balança pender para a curiosidade. Desviando de seu caminho, correu em direção ao bueiro para interceptar a coisa que brilhava, refletindo os pálidos raios solares que conseguiam vazar por entre as nuvens de chuva, ao se aproximar do bueiro algo subitamente mudou. O chão até dois segundos atrás completamente reto, começava inclinar bruscamente em ângulo absurdo, um vento forte vindo de lugar algum, arranca o guarda-chuva de suas mãos e antes que pudesse perceber estava caindo em direção ao vazio. Silêncio e escuridão o cercaram, por um tempo que parecia estender para sempre a única sensação que tinha era a de cair. Por algum motivo que não conseguia explicar não gritou e entregando-se ao vazio, sentiu um sorriso se desenhar em seu rosto enquanto mergulhava em direção ao nada.
Chegou ao chão com tanta suavidade, que demorou a notar que sua queda terminou. O silêncio ainda era tão absoluto que podia ouvir as batidas de seu coração, mas a escuridão era quebrada por um pequeno brilho dourado a alguns metros a sua frente. Caminhando em direção a luz encontrou uma moeda que parecia ser de ouro nela gravados a efígie de um homem de cartola com um sorriso mordaz de um lado e um dado com símbolos estranhos no outro, enquanto examinava a moeda sentiu uma leve brisa acariciar seu rosto. “Uma saída!” pensou ele. Guiado por essa esperança seguiu a corrente de ar, errando as cegas o trajeto pareceu durar para sempre, mas estava surpreendentemente calmo. O sopro frio que tocava sua pele o guiava e tranquilizava, sem perceber fechou os olhos enquanto andava e se deixou levar apenas pelo tato e apenas quando sentiu o calor do sol sobre sua pele abriu os olhos novamente, para imediatamente duvidar do que via.
Aquilo não era possível.
Não podia ser real, mas era e lentamente começou a realizar que sua vida nunca mais seria a mesma. O que o fez desabar… em uma imensa gargalhada.

Quando finalmente voltou a si, a paisagem exótica que se desenhava a sua frente continuava a desafiar sua razão, mesmo após ter passado um tempo que lhe pareceu extremamente longo encarando o horizonte. Estaria sonhando? Acordaria em sua cama e descobriria que na ânsia de se livrar do tédio do seu dia a dia seu subconsciente lhe presenteara com um escape onírico? Teria de fato caído no bueiro e agora estaria delirando enquanto se afogava inconsciente na sujeira embaixo da calçada? Não. O calor do sol, os cheiros que vinham da grande massa de árvores que cobria tudo que a sua vista alcançava, o canto dos pássaros estranhos que ele ouvia… Tudo parecia real demais, mais real que muito do que ele vivera até ali. Mas fosse sonho ou não, ele não poderia continuar plantado ali para sempre. Mais do que isso, ele não queria mais ficar inerte; toda essa experiência enchera seu ser de um êxtase que ele jamais sentira e seu corpo transbordava com a urgência de explorar esse lugar desconhecido onde ele foi absurdamente lançado. Com cuidado desceu a encosta do topo da colina onde o túnel que seguiu o levou. Curiosamente parecia haver uma trilha que levava do mirante onde estava até a mata, trilha essa que ao chegar à orla da área arborizada se abria em dois caminhos que entrava na floresta, novamente a indecisão o paralisou. Sempre fora assim durante toda a sua vida, toda escolha era um martírio e sempre que podia, deixava aos outros o fardo de decidir. O que ver, aonde ir, o que comer… Para ele era sempre tanto faz, o que for melhor para vocês, o que vocês preferem… Nas decisões importantes, não era diferente, sempre queria aprovação, conselhos, orientação de terceiros lhe parecia impossível que ele pudesse decidir sozinho, não queria fazê-lo, na verdade. Decidir era assumir a responsabilidade era assinalar que se a escolha fosse errada era culpa dele e de mais ninguém… Mas não queria mais ser essa pessoa! Ele quebrara a rotina, estava em um novo mundo, por que não aproveitar para recomeçar e criar um novo Eu? Além disso, mesmo que ainda quisesse manter sua insegurança não tinha a quem apelar. Estava sozinho apenas com a roupa do corpo e a estranha moeda que causara toda essa bizarra aventura. Pensar na moeda, no entanto, lhe deu uma ideia divertida. Iria sortear o caminho que escolheria! Ainda era de certa forma fugir um pouco da responsabilidade de escolher, mas não deixava de ser emocionante (e uma fuga da sua persona covarde e insegura) se colocar dessa forma na mão da sorte. Com um sorriso travesso no rosto atirou a moeda para cima e assobiando completamente sem ritmo enveredou pelo caminho da esquerda. À medida que se embrenhava pelo caminho escolhido, curiosidade e apreensão disputavam espaço em sua mente. Nunca fora especialmente ligado em plantas, mas nenhuma das flores e arvores que via por ali se quer lembravam qualquer coisa que já tivesse visto antes… Após um tempo também notou como a mata era silenciosa. Enquanto observava o horizonte ele havia ouvido pássaros. Poderia jurar que ouviu! Mas agora nada, a consciência desse silêncio pesou sobre ele como um lençol de aço o fazendo parar de assobiar e andar mais devagar para evitar fazer muito barulho com seus passos. Tentando controlar a ansiedade que já começava a sufocá-lo, disse a si mesmo que era um bom sinal a mata ser silenciosa, afinal isso significava que não havia nenhum bicho o espreitando entre as altas árvores que margeavam o caminho. No entanto, esse pensamento puxou outro que se instalou fortemente em sua mente: em uma das várias madrugadas insones em que se postara frente à TV na esperança de adormecer enquanto assistia coisas aleatórias vira em um programa sobre vida animal que predadores eram silenciosos… Péssima memoria para se evocar! Desse momento em diante ficou impossível não enxergar olhos famintos nas sombras que o cercavam. Teria escolhido certo? O outro caminho seria mais iluminado e menos opressor? Impossível saber, mas a voz aquela maldita vozinha que o acompanha desde que podia se lembrar insistia que sim, ele escolhera errado. O outro caminho era melhor e ele estragara tudo, seria devorado por ser estupido e ter deixado a decisão para o acaso! Aliás, o que ele estava fazendo naquele lugar estupido para começo de conversa? Ele deveria estar no trabalho! O que diabos ele tinha na cabeça em ter ido atrás daquela moeda! A ansiedade começava a apertar seu peito, a alegria em explorar o abandonara completamente, se apoiou em uma árvore e começou a escorrer sem perceber até estar sentado no chão completamente paralisado pelo medo e pelos pensamentos invasivos.
E enquanto estava ali sem conseguir prosseguir ou voltar, lutando contra o tremor que tomava conta de seus membros e das lagrimas que escorriam de seus olhos, inacreditavelmente começou ouvir música. Animada, vibrante, daquelas que fazem seus pés se mexerem sem que você note… A curiosidade ressurgiu como uma fênix em seu coração, com suas chamas banindo o desespero, o som parecia vir dali perto enxugando as lagrimas se levantou e deixou a trilha em direção ao som de festa! Não demorou e além da música, passou também a sentir o cheiro de comida e se lembrou que sua última refeição uma caneca de café a sabe se lá quantas horas atrás. A fome se uniu a ansiedade emprestando mais pressa a suas pernas até que alcançou uma clareira, onde sentados ao redor de uma mesa de banquete estavam vários cadáveres.

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"O corre corre da cidade grande, tanta gente passa, estou só..."

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