“Heard Somebody Cry”

Ansur Seolferspeech
10 min readJul 22, 2022

As órbitas vazias o encaravam fixamente enquanto comia; que pensamentos se esconderiam naquela escuridão?

Surpreendentemente nem o ambiente ou o seu macabro anfitrião lhe tiraram o apetite, mas relutava em terminar a refeição. O que o esperaria depois dela? O que o esqueleto lhe contaria? Mais urgente ainda, o que ELE contaria para entreter o morto-vivo? E depois de ambas as histórias terem sido contadas o que aconteceria? No entanto, se a ansiedade o assediava por um lado, a curiosidade o consumia pelo outro! Queria saber mais sobre esse lugar, sobre o esqueleto de cartola a sua frente e sobre a bizarra aventura que estava vivendo.

Sem perceber acabou de comer e, a um sinal de Póstumo, um corvo de gravata borboleta deu um rasante recolhendo seu prato. Enquanto a ave voava para longe com a peça de louça, o esqueleto se empertigou em sua cadeira e começou a emitir ruídos guturais como se tentasse afinar suas inexistentes cordas vocais. No entanto, após algum tempo achou o tom adequado em sua voz espectral e começou a contar uma história que é mais ou menos assim:

“Em uma terra muito distante, morava um artesão e suas duas filhas. Elas eram inseparáveis, mas completamente diferentes uma da outra. A mais velha era bela, vibrante, imprevisível e agitada. Já a caçula era fria, misteriosa, silenciosa e distante. Quase todos amavam a mais velha, mas a maioria evitava como podia a mais nova, o que se mostrava uma contradição complicada já que onde uma fosse a outra seguia como se ambas fossem faces opostas de uma mesma moeda. A preferência pela mais velha parecia se aplicar também ao pai que esculpia belos brinquedos para sua primogênita, a menina sempre se apaixonava por cada brinquedo que recebia, mas não era muito cuidadosa e cedo ou tarde o acabava perdendo, ou quebrando. Nas raras vezes em que o brinquedo durava por mais tempo ela acabava por enjoar dele e o punha de lado. O que não importava muito, pois logo seu pai vinha com outro brinquedo. Já a mais nova não ganhava brinquedos novos, mas recolhia todos os que a irmã deixava de lado, quebrados ou inteiros. Mesmo os perdidos ela procurava até encontrar. Como a irmã estava sempre a ganhar brinquedos novos, o quarto da caçula era repleto deles, mas ela nunca era vista brincando com eles, apenas os guardava com carinho e os admirava; ora em silêncio, ora conversando com eles. Um dia um visitante notando a diferença com que o pai tratava as filhas ficou intrigado e perguntou a mais nova:

— Você não fica chateada de que a sua irmã que cuida tão mal dos brinquedos ganhar sempre coisas novas enquanto você, que é tão cuidadosa com os seus, só recebe os que ela já quebrou?

Ao que a garotinha respondeu:

— Eu não trocaria nenhum dos meus brinquedos por um novo. Cada marca, cada rasgo, cada sujeira neles é um sinal de um momento divertido que cada um deles viveram com a minha irmãzinha e isso os torna únicos. Nenhum brinquedo novo carrega os sentimentos que os meus possuem.”

Assim que Póstumo pronunciou a última palavra, como se fosse uma virada combinada em uma peça de teatro, um lamento horrível ecoou pelas árvores. O som era poderoso e perturbador e sobrepôs todas as vozes e a algazarra feita pelos mortos. Após ecoar por um longo minuto, o som sumiu deixando o pesado silêncio no ar e uma nova emoção no abismo que era o olhar de Póstumo. Uma emoção que o Viajante demorou a reconhecer, uma vez que jamais pensou que poderia ser sentida por um ser desmorto: medo.

Sem dizer palavra, Póstumo se levantou e com passos apressados se reuniu aos seus e antes que o Viajante pudesse esboçar qualquer reação ou protesto os mortos-vivos reunidos ao centro da colina desapareceram em uma névoa esverdeada levando com eles todos os vestígios de sua bizarra comemoração. Deixando um perplexo Viajante sozinho novamente.

Por um tempo ele olhou impassível para o lugar onde antes estavam os cadáveres. Teria sonhado? Não estaria sonhando agora? Ainda estaria em sua cama atrasado para o trabalho ou apenas o que aconteceu a partir da moeda era delírio? Talvez a floresta bizarra onde fora parar era real, mas em seu desespero por estar perdido adormeceu e criara toda aquela festa macabra com Póstumo e seus amigos… Quanto mais refletia sobre essas questões, mais sentia sua sanidade se esvair. Afinal, como definir o que era vida real ou o que era fantasia? Mesmo seus dias anteriores poderiam ser uma novela tediosa e mal escrita, um drama sobre o vazio existencial do jovem adulto ansioso e deprimido se arrastando pelo capitalismo tardio até o esquecimento…

Outro lamento ainda mais sofrido e hediondo que o anterior o arrancou das divagações. Seja lá onde quer que estivesse, estava sozinho e com algo assustador vagando por perto. Além disso, anoitecia e ao cair das sombras, flores roxas desabrocharam na clareira onde os mortos dançavam. Uma nesga de luar infiltrou-se pelas copas das árvores indicando uma trilha que saía da área aberta e prosseguia floresta adentro. Curiosamente, a trilha parecia levar para a origem dos berros chorosos, como se algo quisesse que ele fosse investigar o que quer que fosse que tivesse assustado os mortos… A princípio riu da ideia, nada naquele mundo o faria ir de encontro a algo tão terrível, ainda mais à noite e sozinho. Mas quanto mais desdenhava a situação, mais atraente lhe parecia, o que poderia ser tão assustador assim? A que se assemelha algo capaz de fazer fugir àqueles que já não deveriam temer nada? Ele poderia ir de mansinho e apenas observar o que quer seja, saciando sua curiosidade, mas sem se arriscar… E assim, pouco a pouco, a ideia que era absurda se assentou em seu coração e ele começou a trilhar o caminho que o luar iluminava.

Enquanto andava por entre as árvores lembrou-se da conversa com Póstumo, que nomeará o local Floresta das Perdas, e reparando entre as raízes encontrou várias canetas, chaves, algumas moedas e até mesmo uma carta de amor… Aqui e ali algo perdido que encontrou seu lugar na sombra desse bosque misterioso e logo se viu como uma criança enchendo os bolsos com vários souvenirs, mas sempre tomando cuidado para não se afastar muito da trilha… Entretido na pequena caçada, sua mente começou a divagar: o quão incrível seria se não apenas objetos perdidos pudessem ser encontrados ali? O quão maravilhoso seria achar ali entre as árvores, a esperança, o propósito e a alegria que perdera a tanto tempo… Imerso nessas elucubrações soturnas, mal notou quando saiu de uma área de árvores para cair em um bambuzal. Mais curioso ainda, entre os pés de bambu havia uma simpática casinha; a porta aberta e a luz acesa como se o convidasse a entrar.

Cauteloso, esperando outra mudança bizarra de cenário, se aproximou da casa.

A noite já ia alta e a luz da lua e das estrelas era tudo que ele tinha até ali, mas havia alguma fonte de iluminação lá dentro. Com muito cuidado, esticou o pescoço em direção a porta para espiar dentro do lugar se expondo o mínimo possível. Lá dentro uma cama, uma poltrona e uma escrivaninha; móveis simples, mas de bom gosto. Sobre a escrivaninha uma lamparina iluminava o quarto e fazia a luz que se estendia até a soleira. Não havia sinal do morador, mas por outro lado tudo parecia muito em ordem para estar abandonado. Além disso, o cansaço do dia começou a lhe pesar e por mais que a cautela lhe gritasse contra a ideia de se abrigar naquele lugar desconhecido, a ideia de dormir ao relento naquela mata sinistra também não parecia nem um pouco segura…

Perigo por perigo a curiosidade o fez pender por investigar melhor a cabana. O lugar era pouco menor que seu apartamento e olhando bem os sinais de uso recente eram visíveis, alguma louça suja, alguns rascunhos ilegíveis sobre a escrivaninha… Apenas a cama estava impecavelmente arrumada, mas coberta de poeira. Incrivelmente após fechar a porta atrás de si, passou a achar o lugar acolhedor. Com essa sensação de segurança, o cansaço que já lhe pesava se tornou entorpecente. Teve, no entanto, um último pensamento lúcido que o fez sentir muito orgulho de si mesmo e arrastou a poltrona usando-a para barrar a porta. Se não impedisse a entrada de alguém pelo menos lhe serviria de aviso, pensou satisfeito antes de cair na cama ainda empoeirada e imediatamente adormecer…

Uma freada brusca o fez acordar batendo a cabeça na janela do ônibus. Engoliu um palavrão já que de certa forma foi uma sorte, seu ponto seria o próximo. Mas… Como chegara até ali? A última coisa que se lembrava era de estar indo para o ponto quando…

Subitamente a lembrança de sua queda pelo bueiro e aventura na floresta bizarra vieram à sua mente! Então foi de fato tudo um sonho? Mas, porque não se lembrava do resto do caminho… Estaria se tornando tão apático que perdia partes inteiras do seu dia? O psicólogo lhe falara sobre episódios assim: Onde a apatia se fazia tão forte que o cérebro simplesmente não registrava os momentos…

Como se para provar seu ponto, encontrou-se fora do ônibus sem ter nenhuma lembrança de descer… Curiosamente os lapsos de memória não o chateavam tanto quanto a percepção de que sua aventura mágica foi apenas um sonho. Não deveria ser um alívio saber que nunca correra aqueles riscos? Que tudo continuava normal? Então, porque se sentia tão decepcionado… Tão profundo estava nesses pensamentos tristes que atravessou a rua sem olhar, uma freada e uma buzina se fizeram ouvir…

…, mas a buzina soou diferente… o timbre era quase humano e parecia tão triste… O reconhecimento desse som o acertou como um soco e fez o asfalto sobre seus pés perder a solidez. Sentiu como se afundasse em algo fofo e depois a sensação de despencar, para acordar nos lençóis empoeirados da cabana da floresta de bambu.

Lá fora ressoando mais perto do que nunca os lamentos que assustaram os mortos, mas agora pareciam mais tristes do que assustadores. Um misto de pena e curiosidade começaram a lhe invadir de modo que, antes que pudesse refletir sobre a estranha sensação de alívio que o tomara ao perceber ter apenas sonhado que voltava a sua rotina, colocou o tênis e foi em direção a porta a fim de finalmente descobrir de onde vinham os terríveis lamentos que ecoavam na mata.

Quando finalmente saiu da cabana os lamentos haviam cessado, mas estava perto o suficiente para ouvir os soluços convulsivos que vieram depois deles. Seguindo o som, se embrenhou na floresta de bambu e, após breve procura, encontrou o que procurava.

Os cabelos e barba grandes, sujos e descuidados dificultavam precisar a sua idade, mas de longe o que mais chamava a atenção eram suas roupas. Mesmo rotas e esfarrapadas ainda eram extremamente espalhafatosas: vestes multicoloridas e um manto suntuoso que o faziam parecer recém-saído de uma Comic Con ou de uma sessão LARP de fantasia medieval. Além das roupas, seu comportamento era deveras curioso. Após conseguir controlar os soluços com esforço, o misterioso sujeito, passou a vasculhar a mata a seu redor com vigor obsessivo. Fascinado com seu achado, o Viajante passou a segui-lo pela mata escura, sempre tomando cuidado de fazer o máximo de silêncio e manter a maior distância possível para poder observar sem ser visto. Logo percebeu que seu novo “amigo” estava preso em um loop deprimente de procurar por algo que nunca achava e depois talvez, justamente por não encontrar a tal coisa cair em um profundo desespero do qual se recobrava para voltar a procurar em vão e se desesperar novamente. O Viajante notou também que assim como os mortos, os animais evitavam o contato com o homem estando a mata aparentemente vazia, à exceção dos dois e de uma velha coruja que, assim como ele, parecia fascinada com o martírio do triste homem.

— Deve ser surda — pensou o Viajante. — É impossível que esses gritos não a assustem! Eu, que já entendi o padrão, quase infarto a cada vez que ele recomeça…

E o Viajante teve bastante tempo para se acostumar com os gritos, uma vez que seguiu o pobre homem por horas a fio entre os pés de bambu. O que via o assustava e entristecia, mas ao mesmo tempo o fisgava com um magnetismo mórbido que não conseguia explicar. Será que era assim que se sentiam as pessoas que se aglomeravam próximos a acidentes que ele julgou a vida toda?

Seria sádico da parte dele estar ali esse tempo todo só observando o sofrimento daquela pessoa como se estivesse vendo uma tragédia no teatro? Deveria se aproximar? Mas e se ele fosse perigoso? Deveria ir embora?

Novamente suas elucubrações privaram seus sentidos da percepção de seus arredores e essa poderia ter sido sua distração derradeira não fosse pela sua parceira de “espetáculo”. A coruja, que parecia às vezes um animal de cera de tão imóvel que ficava a observar o homem que chorava, se virou em sua direção como se olhasse para além dele e soltou um curto pio como se lhe chamasse atenção. Isso o trouxe de volta à realidade e o fez olhar para trás como por instinto e foi aí que percebeu o perigo que corria: Havia algo o observando na escuridão.

As sombras cobriam o corpo da Coisa, mas os olhos -brilhantes, cruéis e famintos — eram evidentes. A Coisa se aproximava lentamente aproveitando sua distração; mas quando ele a notou e fugiu as carreiras, percebeu que a Coisa também era bastante rápida para persegui-lo. No medo, corria a esmo, sem sequer lembrar o caminho que fizera até ali, sempre virando para trás para verificar a distância entre ele e aqueles olhos vorazes.

Para seu desespero, a cada vez que olhava, estavam mais próximos. Os pensamentos na sua cabeça eram um turbilhão. Parte dele queria focar no caminho a frente, mas como a coisa não fazia barulho ao se deslocar, virar para olhá-la era a única forma de se manter consciente de sua posição. Isso, no entanto, teve seu preço. Enquanto caía ao tropeçar pôde ouvir a voz dentro da sua cabeça lhe dizer um “eu avisei”.

Caído no chão, tentava se erguer quando viu o vulto da Coisa pular para lhe dar o bote.

Era o fim.

Queria pensar que morria sem arrependimentos, mas arrependimentos era tudo o que acumulara até ali. Sua resignação ante a morte. Contudo, não teve tempo para se assentar. Um raio de chamas azuladas engolfou a coisa, salvando-o.

Incrédulo olhou ao redor para descobrir a fonte do milagre e se deparou com o homem que chorava, as mãos e olhos ainda emanando fogo azul e a coruja pousada em seu ombro. Os olhos flamejantes se fixaram no Viajante e o Feiticeiro caminhou de forma resoluta até ele. Se abaixou até que seus rostos ficassem no mesmo nível e o abraçou, desabando em lágrimas.

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