“Dead Man’s Party”
O impacto da cena grotesca a sua frente foi tão intenso que ele não conseguiu nem gritar. Alinhados ao redor de uma farta mesa de banquete estavam oito cadáveres de homens e mulheres sentados em roupas de gala. Enquanto processava essas imagens perturbadoras a situação se tornou ainda mais bizarra quando um dos cadáveres estendeu a mão para agarrar uma coxa de frango e começou a devorar com avidez.
Logo notou todos eles estavam degustando o banquete e nesse momento teve a total certeza que enlouquecera: ninguém cai em um bueiro e desperta em uma floresta. Estava sofrendo de delírios ou tendo um sonho louco enquanto estava em coma… Ou morrera e ali seria algum inferno ou purgatório?
Enquanto sua mente fugia em divagações para escapar do horror que presenciava, sentiu um toque em seu ombro. Lentamente virou o pescoço até ter seus olhos fixos em um par de órbitas vazias pertencentes a um esqueleto em um elegante fraque com uma rosa-branca na lapela.
— Bem-vindo a Festa dos Mortos, rapaz! Embora você me pareça um penetra!
Antes que pudesse responder, no entanto, o esqueleto aproximou seu crânio dele, como se o farejasse a despeito da falta de nariz. Após um tempo parado frente a seu peito o esqueleto se empertigou e mesmo sem olhos o Visitante podia jurar que ele o olhava profundamente:
— Bem, pelo menos parte de você pertence aqui, pelo que sinto. Venha, irei lhe mostrar o lugar.
Boquiaberto, o Visitante ficou plantado enquanto o esqueleto começava a andar para o centro da clareira. Notando que não era seguido, voltou e puxou o rapaz que ainda olhava para o mórbido espetáculo na mesa de banquete.
— Ignore essas pessoas na sala de jantar, elas estão ocupadas com outros interesses e é até bom para você que assim seja.
Enquanto era puxado pelo seu esquelético cicerone, o Visitante notou que toda a clareira estava ocupada por variados tipos de cadáveres ambulantes engajados em atividades festivas. Outras mesas de banquetes apareciam aqui e ali, algumas com manjares apetitosos que o faziam lembrar dolorosamente que não almoçara ainda, outras com festins macabros que faziam seu estomago embrulhar. Havia também mesas de jogos onde os mortos apostavam de óbolos e dentes de ouro a vermes e partes de si em carteados, roletas e dados. Um olhar mais atento o fez notar que a bolinha na roleta era, na verdade, o olho de um dos convidados…
Desviando o rosto com repulsa, sua atenção foi atraída para as várias “pistas de dança” que surgiam entre as mesas. Extremamente ecléticas entre si: Ao mesmo tempo , em que esqueletos vestindo farrapos de trajes de gala valsavam lugubremente uma ária triste, um cadáver putrefato em uma extravagante roupa vermelha liderava uma horda de zumbis em uma complexa coreografia sob um globo de luz que parecia conectado a lugar nenhum. Tão embasbacado estava com tão macabra comemoração que se desenrolava ao seu redor, que não percebeu quando o esqueleto parou de puxá-lo e passou a apenas observá-lo em silêncio. Quando notou aquelas órbitas vazias fixas nele, com algo que parecia curiosidade brilhando naquela escuridão infinita, ficou extremamente desconcertado.
— Sr. Esqueleto onde estou? — finalmente perguntou o jovem desconfortável com o silêncio do outro.
— Pode me chamar de Póstumo rapaz — respondeu com uma mesura o esqueleto — , e você está na Floresta das Perdas, que fica em Qualquer Lugar e em Lugar Nenhum.
— Floresta das Perdas? — murmurou confuso o Visitante.
— Sim, o lugar onde você só encontra algo ao perder-se e onde aqueles que perderam algo se reúnem para celebrar suas perdas. — Prosseguiu Póstumo professoral.
— Nessa clareira, nós celebramos a vida que já não temos, em outras aqueles que perderam a sanidade tomam chá, existem outras onde os que perderam a perspectiva se unem em concílios e outras onde aqueles que perderam a fé fazem grandes cultos ao Nada — continuou o esqueleto ilustrando sua explicação com expansivos gestos.
Enquanto ouviu a surreal explicação de seu bizarro interlocutor sobre o lugar onde se encontrava, o Visitante oscilava entre o fascínio e o pavor. Com certeza chegar ali fora a coisa mais incrível que já lhe ocorrera, nada em sua vida monótona sequer se compararia aos últimos momentos que vivera ali. Por outro lado, nunca sentira tanto medo na vida… Se antes na trilha temera por encontrar animais selvagens, seu estomago embrulhava de angústia em pensar que poderia topar com literalmente qualquer coisa naquela floresta. Aliás não estaria ele já em uma enorme encrenca? Rodeado de cadáveres ambulantes, não estaria correndo o risco de se tornar parte do jantar? E esse esqueleto tão falante e solicito não estaria armando algo?
Desconfiar de Póstumo trouxe sua atenção de volta ao falatório do esqueleto que já concluía sua explicação sobre a floresta.
— …para cada tipo de perdedor, — disse Póstumo com uma sugestão de deboche no vazio de seu olhar, — , deve haver uma clareira e um tipo de celebração degenerada como a nossa. Mas me diga rapaz, e você, o que perdeu?
O Visitante se engasgou com a pergunta feita tão subitamente, o que perdera? Os últimos vinte anos desfilaram por sua mente como o teaser de um blockbuster, tantas perdas… Oportunidades, esperanças, coragem, brilho, amores….. Mas não seria naquela clareira tétrica que abriria seu coração para expor suas magoas a um esqueleto falastrão.
— Acho que perdi meu caminho, Sr. Póstumo. Estava completamente sem saber para onde ir quando ouvi o som da sua festa — disse tentando disfarçar seus pensamentos com um sorriso amarelo aparentando inocência. Não era mentira afinal de contas, nem todos os errantes podem estar perdidos, mas ele com certeza estava.
O esqueleto meneou a cabeça. Que expressão teria no rosto se ainda tivesse um? O Visitante se perguntava intrigado.
— Você pode guardar pra si, o que achar que é só teu rapaz; mas mesmo que eu não tenha mais nariz, meu olfato permanece apurado. Dentro de ti há algo tão morto quanto todos nesta clareira, e tão seco quanto meus velhos ossos. Mas já que não quer falar de si, mudemos de assunto. – — Póstumo fez um arco com uma mão da direção do Visitante para a clareira – — Tua vinda foi uma bela dádiva, estava ficando entediado. Nunca fui bom dançarino e acho os banquetes de péssimo gosto, então meu entretenimento aqui sempre foram as apostas. – — Disse enquanto esfregava as falanges do que foram seu dedão e seu indicador – — No entanto, estou numa maré de azar terrível, de todos os vermes que acumulei em anos embaixo da terra só me sobrou o Quincas. Enquanto o esqueleto prosseguia em sua verborragia, um magro verme escorregou da manga de seu fraque como se respondesse ao fato de ter sido mencionado.
— Veja — prosseguiu Póstumo — , eu poderia tentar apostá-lo para cortejar as damas da sorte a me assistirem arriscar tudo em uma jogada ousada para voltar ao jogo. Mas a ideia de perdê-lo me parte o coração que já não possuo. Tenho um apego especial por ele ,sabe? Foi o primeiro a me roer as carnes quando passei pro lado de cá. — Enquanto falava, estendeu a mão para o verme se enroscar em seus dedos, e começou a acariciá-lo distraidamente.
O silêncio do boquiaberto Visitante só não foi completo pelos roncos de protesto de seu estômago.
— Mas que anfitrião horrível eu sou! — Exclamou Póstumo ao notar a fome do rapaz. — Espere aqui que te trago um pratinho e em retribuição você ouve uma história e talvez me conte outra, que tal? — E saiu murmurando algo com o verme em sua mão, deixando o Visitante pensando se deveria mesmo continuar ali ou procurar voltar a trilha.
A clareira e todos aqueles cadáveres ambulantes lhe davam arrepios e as perguntas de Póstumo o deixavam desconfortável, mas a lembrança do terror de estar sozinho e sem saber para onde ir na floresta escura fazia com que suas pernas não obedecessem seus impulsos de sair correndo dali. Onde estava aquela pessoa corajosa e ousada de horas atrás? Aquela pessoa que havia decidido não mais ser dominado pela dúvida ou pelos “e se”? Que se embrenhara na mata desconhecida sem ao menos ponderar com cuidado qual trilha tomar? Como durara pouco sua mudança, qual fraca era sua resolução… Já não sabia disso? Quantas vezes já passara por falsas viradas como essa? Quantos réveillons, aniversários e mudanças não foram recebidos com essa atitude resoluta de “Daqui pra frente tudo será diferente” para semanas ou até mesmo dias depois estar tudo igual? Como se atraída pela sua insegurança, a maldita vozinha que o atormentara a vida toda e quase o levara a loucura momentos atrás na trilha voltou a se insinuar em sua mente
— Mas nós estávamos errados em jogar seguro? — a voz pontuou com sarcasmo. — Se estamos nessa situação infeliz, — prosseguiu impiedosamente, — é justamente por culpa desse surto de audácia estupido!
Tão imerso estava em seu tribunal interno que nem percebeu quando Póstumo retornou, trazendo um prato com carnes e frutas variadas. Apesar de ter sempre os dentes a mostra, O Visitante podia jurar que o esqueleto lhe sorria.
— Espero não ter demorado muito — disse Póstumo — , mas as vezes é difícil achar comida ainda em bom estado por aqui.
— Mas por favor, sirva-se e quando acabar sente-se confortável para ouvir a minha história.
