A Aposta de Gwydion

Ansur Seolferspeech
5 min readMay 30, 2023

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Havia no horizonte uma mistura suave de cores, um presente do momento, o findar de mais um dia, o crepúsculo. Para além da beleza da cena, o delicado perfume dos lírios e o doce sabor das frutas marcavam a memória. E ainda tinha sons, eram alegres, festivos. A cidade a frente regozijava, era o júbilo de uma grande vitória, todos comemoravam o feito daqueles heróis, o amanhã chegaria e a iminente invasão de orcs não a inundaria com sangue e terror. O espírito de Gwydion estava em plenitude, ele se sentia num estado de ótimo humor, tanto que nem a figura esguia que se aproximava conseguiu perturbá-lo.

Se quer falar comigo, Lugh, se aproxime e diga de uma vez o que deseja.- disse Gwydion sem se virar — Não fique espreitando como um espião, aparentando más intenções. Acredite, você não tem talento para isso.

Ao ouvir essas palavras, o duende, completamente invisível aos olhos de um observador comum, saiu das sombras. Ele caminhou silenciosamente e com muito respeito, até o ser alto de cabelos dourados, que lhe falava sem desviar a própria atenção do horizonte. Ele fitava a cidade em festa há algum tempo e parecia não se cansar de contemplar a cena. Discretamente em sua face havia um pequeno sorriso, tímido, mas verdadeiro, o qual ele não era capaz de controlar.

“Seu escolhido está ficando famoso Gwydion, você deve estar orgulhoso.” — afirmou o duende.

“Estou mesmo. E Morrigan… Ah, deve estar se roendo” — respondeu Gwydion, deixando o sorriso tímido se tornar uma gostosa gargalhada.

“O que ela tem a ver com isso? Além do óbvio de não ficar satisfeita com nada que te favoreça?” — perguntou o duende, curioso.

“Você não sabe?” — Pela primeira vez em horas, aquele ser desviou a sua atenção. Olhando agora para o duende, ele continuou — “Ah, é verdade. Eu nunca lhe contei como foi que conheci o garoto Bran, não é mesmo? Então, em teoria e a contragosto, Morrigan é tão responsável pela carreira heroica de Bran quanto eu. Afinal, ele é o meu prêmio por uma aposta e, sim, faço questão de sempre lembrá-la sobre isso.”

Descontraído e deixando o bom humor aflorar de vez, o ser altivo retornou alguns passos para o interior de seus aposentos, sentou-se em uma cadeira e convidou o duende para sentar-se em outra. O fato raro deixou o pequenino desconfortável, mas ele não declinou o convite. Não o faria, afinal não se recusa um convite de uma arquifada.

“Antes de ter esse porte elegante de combate, que vai além de travar uma simples batalha. Antes de ser um exímio representante da arte de esgrima, mostrando como o florete está mais para um pincel, a desenhar a ruína de seu inimigo. Antes de demonstrar tamanha sabedoria e compreender que magia e graciosidade devem caminhar sempre juntas. Bran era apenas, acredite ou não, um mortal comum.” — Orgulhou-se Gwydion, saboreando as características de Bran, como se enxergasse ali um diamante que fora por ele lapidado — “Deixe-me te contar essa história”:

Anos atrás, em uma das raras reuniões da corte de feerica, Morrigan e eu começamos uma acalorada discussão. Falávamos sobre haver ou não um sentimento de bondade natural, puro, no coração dos mortais. Algo em que sempre acreditei e, claro, Morrigan não. Eu, inclusive, afirmava em alto e bom-tom que esses, os bondosos, eram maioria.

No calor da discussão, percebi tarde a armadilha da bruxa velha e quando dei por mim, estava envolvido em uma aposta, um contrato. Coloquei em jogo os meus poderes, disse que estaria disposto a deixar minha imortalidade de lado para provar que há bondade pura entre as raças humanoides.

Aquela aproveitadora usou bem a brecha que deixei e me amaldiçoou. A partir desse dia e por quase trezentos anos, eu tive de viver como um mortal, à espera de testemunhar um ato de bondade genuína e abnegada. Eu envelheci, meu pequeno, eu senti minha pele enrugar e um medo cruel tomou o meu coração. O medo de encontrar-me com o nada, com o vazio, o medo de conhecer a morte.

Andei por esse mundo com um maldito mendigo, esfarrapado, sujo. Não que essa fosse uma condição do contrato, mas achei que ao receber esmolas cumpriria a maldição. Irônico! Eu recebia o que pedia, umas mais ou outras menos, mas aprendi que as pessoas não faziam por mim. Elas só me davam sobras ou então, quando realmente aquilo lhes fariam falta, elas estavam a procura de aplacar culpas e estar em paz consigo mesmas.

Óbvio que Morrigan havia pensado nisso. O contrato bem elaborado daquela bruxa considerava a atitude delas egoísta e eu continuava o meu suplício. Confesso, hoje com vergonha, que cheguei a acreditar que eu estava mesmo enganado e pagaria com minha vida. Justo.

Só que então, Bran aconteceu.

Era uma noite em que viajava sozinho. Estava quente, o céu repleto de estrelas e eu havia ganhado um assado especialmente delicioso. Me sentei no conforto de uma árvore, na saída da cidade para uma refeição em paz. O tempo havia roubado minha destreza e eu não queria arriscar ter que brigar com cães novamente.

As vistas também já não ajudavam e eu não os vi chegar. Fui abordado por marginais que resolveram, acredito que por diversão, me espancar. Nessa hora eu me desesperei, senti que morreria ali, sozinho e pelas mãos dos malditos mortais. Os mesmos pelos quais eu penhorei minha imortalidade.

Então, um garoto que passava gritou. Primeiro tentando alertar os brutamontes para que parassem, não iria e não funcionou. Eles estavam entorpecidos pela selvageria.

O valente meio elfo, acho que devia ter uns 17 anos, no máximo, franzino e armado com um pedaço de madeira qualquer, mesmo sem nenhuma chance, partiu para cima dos marginais. Ele morreria ali, apenas para que eu tivesse a oportunidade de fugir. Um jovem, com grande futuro, estava disposto a trocar a sua vida pela de um velho andarilho.

Essa foi a coisa mais nobre que eu já vivenciei e isso entre todos os reinos pelos quais eu já caminhei. Tão nobre que anulou a maldição de Morrigan. No mesmo instante dessa percepção, os malditos bandidos estavam, por mim, perpetuamente condenados a viver como ratos e o jovem Bran, bem, boquiaberto… Contemplava admirado toda a glória e o esplendor de Gwydion, o Radiante.

O resto você já deve imaginar, tornei Bran o meu protegido e o instrui a usar parte dos meus poderes para dar força a sua coragem. Ele se tornou um vagante em nome da bondade que provei existir e sim, nunca me senti tão feliz cedendo meu poder para alguém.

E como dizem por aí, meu pequeno malandrinho: a males que vem para o bem.

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"O corre corre da cidade grande, tanta gente passa, estou só..."

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